Quando a pandemia chegou, em março de 2020, um dos setores mais afetados pelo fechamento dos estabelecimentos foi o criativo, principalmente aqueles ligados direta ou indiretamente à indústria da moda.
De um dia para o outro, milhares de pessoas foram afastadas de seus empregos por tempo indeterminado, estoques inteiros foram fechados e, por fim, quem não conseguiu adaptar-se ao novo modus operandi imposto, fracassou. Para quem tinha alguma dúvida ou receio, foi impossível desassociar, ou melhor, se desconectar. A internet nunca esteve tão presente em nossas vidas como tem sido nos últimos três anos.
Paralelamente a isso, também foi um ótimo momento para que a indústria convergisse definitivamente do analógico para o digital. À medida que a pandemia foi entendida como algo a se lidar em médio e longo prazo, grandes marcas e grifes internacionais investiram pesado em eventos virtuais, incluindo a transmissão de seus desfiles dentro ou fora das semanas de moda historicamente estabelecidas. Ah, e como não dizer sobre as glamurosas festas organizadas no metaverso, com roupas online e acessórios únicos em NFTs?
No caso dos desfiles, ao contrário dos últimos exemplos citados, a mídia e parte da imprensa trataram as transmissões online das apresentações como se fossem atos revolucionários. É inegável que toda essa dinâmica foi acelerada, mas para quem acompanha, de fato, a moda, os shows sempre foram virtuais, intocáveis e indisponíveis. A grande maioria da população sequer pisou numa passarela na vida.
Para mim, pelo menos, que nasci na periferia paulistana, a moda sempre foi indisponível. O meu único contato com o vestir era nos shoppings. Tudo mudou quando vi uma revista de moda pela primeira vez - há alguns anos, algumas publicações editoriais vendiam edições focadas em temporadas de alta-costura, é sobre elas que me refiro aqui . Depois, quando tive acesso à internet, me deparei com um desfile sendo transmitido no Youtube. Logo depois, descobri quem eram [Alexander] McQueen, Karl Lagerfeld, Miuccia Prada, Silvia Fendi… Como não falar dos clipes da era Monster de Lady Gaga? Aquilo ali era o meu maior, senão único, contato com esse lado criativo da indústria.
Se, por um lado, posso dizer que desde pequeno tive acesso ao conhecimento do que é moda e como ela funciona, por outro, é importante frisar que este acesso sempre foi até a página dois. Existe uma narrativa gerida pelos grandes conglomerados de que o mundo da moda está cada dia mais inclusivo, aliás, mais democrático. Essa agenda, reproduzida sistematicamente por todos os setores e campos da área, tem como objetivo aproximar-se - pero no mucho - de quem eles sabem que engajam, como admirados e entusiastas, mas que eles não querem como clientes. Afinal, luxo tem ainda tudo a ver com exclusividade, isto é, tudo aquilo que foge da massa, já ponderava pensadores como Lipovetsky e Pastoureau.
É bem comum nos depararmos com apresentações de desfiles em espaços públicos, por exemplo, estações de trem, sedes de partidos progressistas e verdes, além de praias e canais populares. Até que ponto isso pode ser considerado democrático? Democracia pressupõe igualdade e equidade na participação de algo. Das pessoas que vão aos desfiles, quantas delas têm acesso aos produtos que estão vendo ou desfilando? Nem preciso dizer daqueles que só conseguem assistir pela internet ou acompanhar pelas revistas daqui um ou dois meses pós-show. Se pontuarmos sobre as condições submetidas aos trabalhadores e às trabalhadoras, então…
Logo, parecia honesto a ideia de que a transmissão de desfiles virtuais em espaço não-físicos acontecesse com maior frequência e passasse a dar o tom nas temporadas. O viés criativo foi muito fomentado, além do que, os custos de produção foram sumariamente reduzidos e não há comparações em relação ao custo humano, que passou a ser discutido mais do que nunca. Entretanto, com a chegada das vacinas, a dita "normalidade" virou uma obsessão - e, de sonho distante, voltou a ser real. Os fashion films que tinha se tornado lei, viraram um complemento, uma gracinha a mais que apenas os endinheirados conseguem manter. Na moda e em vários outros universos, o tête-à-tête - pelo menos para quem pode bancar ida a desfiles, showrooms e re-sees - é muito importante, mesmo com os custos gerados por isso.
Eu diria que o debate sobre democratização na moda atravessa diversas frentes, desde a cadeia de produção até dentro das empresas, nos postos de liderança, conforme discorri nos parágrafos anteriores. Há diversas formas - algumas mais simplistas que outras - de se lidar com isso, contudo, entender que o povo deve estar no centro de todas as questões que envolvem (e fomentam) a indústria e a melhor forma de começar, pois este possui suas demandas e particularidades que precisam ser mapeadas sem ignorar as interseccionalidades abrangentes. A democratização da moda não pode terminar num desfile que é transmitido ou online ou que acontece numa praia pública no Nordeste para quem quiser ver; é preciso que as pessoas que participam deste processo sejam bem remuneradas, tenham seus direitos humanos protegidos e garantidos e ainda participem ativamente dos processos técnicos e criativos.
Dessa forma, com autonomia e disposição, trabalhadores e trabalhadoras devem se organizar para que nenhum direito lhes seja negado, enfim, esperança que não se organiza, morre, já dizia o célebre professor Paulo Freire.
João Vitor Araújo é
Nascido em São Paulo e sempre com vontade de contar, de forma crítica, boas histórias, João Vitor é jornalista, assessor de comunicação e fotógrafo, tendo a moda e as artes como grandes norteadores de sua vida pessoal e profissional. Na moda, foi colaborador da revista ELLE Brasil e do antigo portal BYINBY, que fechou durante a pandemia. Além disso, colaborou com o portal Elástica, da editora Abril, e tem uma revista independente de retratos masculinos, a AntroTYPE. Como objeto de pesquisa, João sempre teve a imagem masculina, o sexo, a cidade e o consumo como pilares a serem discutios e entendendidos, sem que isso envolvesse algum tabu. Na Complete Magazine, é colunista de Moda e Arte.