O Barco de Grada Kilomba: onde a memória navega no presente

A obra não busca monumentalizar o passado, mas expor o seu ventre. Em vez de elevar-se ao céu como um marco imperial, desce ao nível do chão, revelando o lado oculto das narrativas coloniais.

Cultura // Art-time
por Caíque Nucci
Outubro, 2025

Na Galeria Galpão do Inhotim, repousa uma embarcação feita de lembranças. Estendida por 32 metros, O Barco (2021), da artista luso-guineense Grada Kilomba, emerge do chão como uma cicatriz silenciosa, esculpida em 134 blocos de madeira queimada. A instalação evoca o ventre das embarcações que cruzaram o Atlântico levando milhões de corpos africanos escravizados, traduzindo em matéria uma história de violência, silenciamento e resistência.

Cada bloco de madeira carrega marcas singulares, queimaduras e texturas que remetem à pele e à memória. No percurso entre as peças, um poema gravado em ouro se desdobra em seis idiomas: Yorubá, Crioulo de Cabo Verde, Kimbundu, Português, Inglês e Árabe; conduzindo o visitante por uma travessia sensorial e histórica. A instalação convida a percorrer esse espaço como quem caminha sobre arquivos não escritos, vestígios de vidas transformadas em números e agora restituídas à condição humana.

Obra de Grada Kilomba, O Barco

A obra não busca monumentalizar o passado, mas expor o seu ventre. Em vez de elevar-se ao céu como um marco imperial, desce ao nível do chão, revelando o lado oculto das narrativas coloniais. A horizontalidade da instalação contrasta com a verticalidade das estruturas tradicionais de poder, transformando o espaço em território de contemplação e escuta.

O Barco ultrapassa a dimensão escultórica. Ao longo de sua exibição no Inhotim, três atos performáticos reativam o espaço com música, dança e corpo. No primeiro ato, o Ensemble Lisboa ocupou a galeria com vozes e percussões que ressoaram como cânticos memoriais. Nos atos seguintes, artistas da própria região compõem um ensemble local, criando um elo direto entre território, comunidade e memória viva.

Artista Grada Kilomba

Apresentada anteriormente em Lisboa, Barcelona e Londres, a obra encontra no Inhotim um novo solo simbólico. Entre árvores, luz natural e o silêncio da paisagem mineira, o que antes foi instrumento de opressão transforma-se em altar de lembrança e afirmação. O Barco cria um espaço de ritual e reflexão, onde passado, presente e futuro se entrelaçam.

Grada Kilomba, no Inhotim

Ao atravessar essa instalação, o visitante não contempla apenas uma obra, mas um território de memória coletiva. A peça de Grada Kilomba reafirma a arte como instrumento de reescrita histórica e espaço de cura, abrindo brechas no tempo para que histórias silenciadas possam ser contadas de novo, desta vez, com dignidade.

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