O desfile "A casa da tia Cleusa” mergulha em memórias da infância do designer em Santo André no ABC Paulista e transforma domesticidades do dia a dia em plano de fundo para sua coleção.
Depois de um début marcado pela reflexão sobre a morte, em homenagem a uma amiga próxima, Augusto Paz apresenta sua segunda coleção com um gesto que se desloca do luto para a celebração da vida. O desfile "A casa da tia Cleusa” mergulha em memórias da infância do designer em Santo André no ABC Paulista e transforma domesticidades do dia a dia em plano de fundo para sua coleção.
O título da coleção é um tributo às mulheres brasileiras e a seus lares, com ênfase na figura da tia Cleusa, anfitriã dos verões de infância do designer. O ponto de partida é a cozinha, espaço central de convivência e imaginação, com suas cortinas franzidas, capas de utensílios, o tradicional “puxa-saco” de sacolas plásticas e os tecidos estampados em florais, listras e xadrez. Essas referências aparecem reinterpretadas em volumes, cores e texturas que misturam ludicidade e sofisticação.
As cores da coleção transitam entre a vivacidade dos rosas, vermelhos, amarelos e azuis vibrantes, em contraste com verdes intensos, preto e marrom. Essa paleta, derivada da decoração doméstica e de uma estética suburbana brasileira, aparece organizada de forma refinada e contemporânea. Na construção das peças, Augusto reafirma sua assinatura sob medida, valorizando silhuetas estruturadas e volumes bem arquitetados. Vestidos, saias e camisas remetem às formas dos anos 1940: parte superior ajustada ao corpo e saias que se abrem em amplitudes, com sobreposições de franzidos e babados nas barras e laterais. O trespasse, recurso recorrente em seu repertório, reforça a ligação com técnicas clássicas, aparecendo em vestidos e conjuntos de saia e camisa.
Na alfaiataria, o designer investiga os pioneiros smokings femininos dos anos 1970. Blazers, calças, jaquetas, coletes e casacos ganham lapelas de novos formatos, abotoaduras experimentais e palas soltas nas costas. Há bolsos volumosos em casacos e coletes, conferindo um tom urbano às peças. As jaquetas curtas, com gola ampla e abotoamento duplo, contrastam com blazers alongados e calças afuniladas, revelando um equilíbrio entre sofisticação formal e funcionalidade cotidiana.
O trabalho manual é destaque. O crochê aparece tanto em detalhes pontuais quanto na superfície inteira de casacos. Bordados de pedrarias espalham-se em vestidos, sugerindo luxo artesanal. A parceria com a marca Cuadró, da designer Carla Prado, trouxe acessórios exclusivos feitos a partir de sobras de tecido do ateliê. Patchworks e bordados transformaram resíduos em objetos desejáveis, ampliando o discurso sustentável da coleção.
Perguntado sobre como transformou lembranças pessoais em coleção, Augusto respondeu com clareza: não buscou representar todas as mulheres brasileiras, mas a figura concreta de sua tia. “Meu exercício foi retornar a esse lugar gostoso da infância, almoçando com minha tia durante as férias. Peguei elementos dessa casa tipicamente brasileira e os transportei para a coleção. Os franzidos vêm das cortininhas da pia, o piso de caquinhos virou bordado com Swarovski, e até a luva de baile foi reinterpretada como luva de lavar louça”, contou.
O designer explicou que sempre gostou das silhuetas refinadas dos anos 1950 e 1960, mas que agora quis imaginar como seria um baile brasileiro no quintal de casa. “É uma coleção colorida, lúdica, mas ainda sofisticada. Um diálogo entre memória e desejo contemporâneo.”
Em comparação com a coleção anterior, marcada pela reflexão sobre a morte, Augusto definiu “A Casa da Tia Cleusa” como mais leve e alegre. “Sem dúvida, é muito mais lúdico. Mais colorido, mais amplo, com esse lugar de criança feliz. É uma forma de atravessar o luto da perda da minha mãe, de encontrar força em lembranças boas.”
Apesar da forte carga autobiográfica, Augusto também pensa em suas clientes. “O ateliê tem uma demanda corporativa. Por isso, criamos alfaiataria em crepe, mais leve para o clima brasileiro, e camisas com mangas amplas e punhos em ribana, para oferecer conforto. É memória, mas também é funcionalidade.”
O desfile conecta afetividade e técnica, intimidade e sofisticação, tradição e experimentação. Ao transformar elementos da casa suburbana brasileira em design de passarela, o estilista desloca o olhar do público: o que antes era considerado banal ou doméstico surge agora como símbolo de identidade estética e potência criativa. Se sua estreia falou sobre finitude, a segunda coleção fala sobre permanência: das lembranças, das mulheres que estruturam lares, das manualidades que resistem ao tempo. Augusto prova que a moda autoral, ao mesmo tempo que se ancora na autobiografia, pode abrir espaço para diálogos mais amplos sobre cultura, identidade e afeto.