Bomber Jaqueta: (Re)Invenção & Identidade

Se a história do sportswear e da indumentária militar já é marcada por apropriações, a bomber carrega uma vantagem estratégica: sua forma é simples, reconhecível, quase icônica. Essa base sólida permite que cada criador projete nela suas narrativas, deslocando o sentido da peça sem apagar sua essência.

Moda // Other Side
por Sarah Rocksane Araújo
Agosto, 2025

Existem peças que, pela sua própria trajetória, deixam de ser apenas roupas para se tornarem símbolos culturais. A bomber jacket é uma delas. Nascida como uniforme militar, popularizada pelo cinema e pela música e reinterpretada por gerações de designers, ela se tornou um território fértil para debates sobre identidade, memória e estilo.

Se a história do sportswear e da indumentária militar já é marcada por apropriações, a bomber carrega uma vantagem estratégica: sua forma é simples, reconhecível, quase icônica. Essa base sólida permite que cada criador projete nela suas narrativas, deslocando o sentido da peça sem apagar sua essência. Para entender como essa reinvenção funciona, vale olhar para dois exemplos recentes que colocam em perspectiva não apenas o design, mas o peso cultural que cada leitura carrega.

Adidas Originals

GRACE WALES BONNER — ADIDAS & 1970's JAMAICANO

Créditos da Imagem: Koto Bolofo

Grace Wales Bonner, fundadora da marca londrina Wales Bonner, é uma das designers promissoras da moda contemporânea, reconhecida com o Prêmio LVMH em 2016. Nascida em Londres, filha de pai jamaicano e mãe inglesa, ela utiliza sua ancestralidade como fonte para suas coleções, que exploram com refinamento artesanal a identidade e a sexualidade negra masculina. Formada pela Central Saint Martins, Wales Bonner trabalhou com Meadham Kirchhoff e com a editora de moda da Vogue americana, Camilla Nickerson. Seu debut, “Ebonics” (2015), lhe rendeu o prêmio de Designer Emergente no British Fashion Awards.

Adidas X Wales Bonner

Ela é reconhecida por combinar uma técnica precisa de alfaiataria com uma visão poética e acadêmica da cultura negra, ampliando sua atuação para exposições, colaborações artísticas e residências criativas, sempre abordando temas como identidade, história e etnia. Sua obra estabelece diálogos entre o afro-caribenho e o luxo europeu. Em suas mãos, a jaqueta transcende o sportswear e se transforma em uma cápsula de história. Um exemplo emblemático é um conjunto esportivo rosa-avermelhado, com gola ampla, modelagem ajustada e acabamentos em crochê artesanal. A peça remete às roupas usadas pelo pai nos anos 1970, mas não como uma reprodução literal, trata-se de uma releitura elevada por tecidos de luxo e construção refinada. Na Jamaica daquela época, o agasalho esportivo simbolizava prestígio, rivalizando com a alfaiataria tradicional. Bonner resgata essa memória e a insere no circuito da moda contemporânea, dissolvendo as fronteiras entre o popular e o sofisticado.

Adidas X Wales Bonner

MARTINE ROSE — 1990’s KIDS CLUB

Créditos da Imagem: Rebekah Ho

Martine Rose, designer londrina, a frente de sua marca homônima desde 2007, conquistou um status cult no design de moda masculina. Conhecida por sua abordagem não convencional, Rose apresenta suas coleções fora do calendário tradicional, em locais inusitados no norte de Londres, como centros de escalada e mercados. Crescendo no sul de Londres, cercada por subculturas diversas, incluindo as cenas rave e reggae dos anos 1990, sua estética é profundamente inspirada pela interação entre essas comunidades. Formada pela Universidade de Middlesex em 2002, ela lançou sua primeira marca, LMNOP, em 2003, ao lado de Tamara Rothstein.

Martine Rose AW23 - Créditos da Imagem: Jimi Franklin

Dois anos depois, iniciou seu projeto solo, inicialmente focado em camisas masculinas, com o apoio financeiro e de mentoria do Prince’s Trust, instituição britânica que apoia jovens empreendedores. Apoiada inicialmente pela Fashion East, Rose também recebeu o patrocínio do prêmio NEWGEN MEN, do British Fashion Council. Seus ternos e peças de streetwear são vendidos local e internacionalmente por lojas como Matches Fashion, Machine-A, Barneys New York e Ssense. Embora posicionada na moda masculina, sua marca atrai uma crescente base feminina. Rose colaborou com marcas como Been Trill, Timberland e CAT. Em 2017, foi indicada ao prestigiado prêmio ANDAM e pré-selecionada para o Prêmio LVMH; em 2018, concorreu ao título de Designer Britânica do Ano, pelo BFC.

Martine Rose

Suas referências à cultura rave dos anos 1990 e às subculturas periféricas do Reino Unido são evidentes, por exemplo, em sua bomber que, à primeira vista, parece familiar, com blocos de cor, silhueta ampla e náilon encorpado, mas que surpreende na construção dos ombros, que remete a um xale ou toga, fugindo do corte tradicional do sportswear. Essa sutileza desconstrói o retrô e introduz complexidade de alfaiataria, tensionando a relação entre alta e baixa cultura, questionando hierarquias estéticas e propondo novas formas de consumo e desejo.

HISTÓRIA & ATEMPORALIDADE

Esse tipo de leitura e transformação só é possível porque a peça carrega, desde a origem, uma carga de funcionalidade e universalidade. A bomber foi criada para proteger pilotos em condições extremas, depois adaptada ao cotidiano urbano. Essa dualidade, utilitária e estilística, torna-a um terreno versátil para inovação. Designers podem trabalhar sobre ela sem precisar explicar sua função: o público já sabe o que ela é, liberando espaço para explorar o que ela significa. Há também uma questão de atemporalidade.

Diferente de tendências sazonais, a bomber sobrevive às oscilações da moda porque combina três atributos raros: forma reconhecível, potencial narrativo e neutralidade formal. Isso permite que ela absorva códigos estéticos tão distintos quanto o crochê de luxo, o bordado artesanal ou a modelagem de alfaiataria experimental. Na prática, cada reinterpretação da bomber é um comentário sobre pertencimento, sobre o que é preservado e o que é transformado. No cenário atual, em que a moda busca equilíbrio entre memória e inovação, a bomber jacket continua sendo um exemplo preciso de como peças históricas podem se reinventar sem perder relevância.

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