Christian Boltanski: Roupa de gente nenhuma

Ao atravessar um corredor escuro ladeado pelas torres de The Seven Heavenly Palaces, de Anselm Kiefer, o visitante é envolvido por batimentos cardíacos reais, gravados por Boltanski desde 2008. O som do coração humano, normalmente tão privado, aqui se converte em trilha sonora de um percurso sem volta. Cada passo adiante é um mergulho num tempo que não nos pertence, mas que nos molda.

Moda // Other Side
por Sarah Rocksane Araújo
Agosto, 2025

Há algo de profundamente inquietante na visão de uma montanha de roupas que não veste ninguém. Sem cabides, sem vitrines, sem corpos. Em Personnes, a instalação monumental de Christian Boltanski, aquilo que um dia foi íntimo, funcional ou vaidoso se transforma em matéria de memória coletiva, em evidência de uma ausência que sussurra mais do que grita.A peça, exibida no HangarBicocca de Milão, ocupa o espaço como um fantasma ocupa uma casa: silenciosamente presente.

Ao atravessar um corredor escuro ladeado pelas torres de The Seven Heavenly Palaces, de Anselm Kiefer, o visitante é envolvido por batimentos cardíacos reais, gravados por Boltanski desde 2008. O som do coração humano, normalmente tão privado, aqui se converte em trilha sonora de um percurso sem volta. Cada passo adiante é um mergulho num tempo que não nos pertence, mas que nos molda.

Se a moda costuma celebrar a presença, dos corpos, das tendências, do agora, Personnes é sobre a ausência. Uma espécie de anti-moda que, paradoxalmente, nos obriga a pensar sobre tudo o que vestimos. Quem éramos com aquela jaqueta? Quem amou alguém usando aquele vestido? Quantos choraram com a camisa suada que hoje repousa anônima, entre milhares de outras? Roupas que já foram pele, agora se acumulam como testemunhas silenciosas do tempo que passou. A estética da perda, do excesso, da descartabilidade.

A crítica é sutil, mas certeira. Em uma indústria que produz toneladas de roupas por minuto — muitas delas condenadas ao esquecimento antes mesmo de serem usadas —, Boltanski nos devolve o peso simbólico do vestuário. Cada peça ali tem uma história que não saberemos. Mas o vazio deixado pela ausência dessas histórias é justamente o que dá à obra seu poder devastador.

Ao tratar o vestuário como documento da fragilidade humana, Boltanski oferece um comentário que a moda contemporânea raramente se permite fazer: o de que vestir-se é também uma forma de desaparecer. E que o belo não está apenas no novo, no desejável, mas no silêncio deixado por quem já foi.

Ao revisitar os arquivos da marca — hoje preservados como um acervo cultural em Breganze — Martens enxergou atualidade onde muitos viam passado. A estética dos anos 2000 voltou à cena global, e ele usou isso como trampolim. Mas sua abordagem vai além da nostalgia: é uma atualização crítica. A logomania ganha nova ironia. O denim destruído vira escultura. A sensualidade é política.

Um convite para que, diante do espelho ou do cabide, a gente se pergunte: o que nossas roupas dizem de nós quando já não estivermos mais aqui?

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