Um Desabafo Sobre “Tecnologia” por Ursula K. Le Guin

O colunista Gilles Pedroza Leite traduziu e elaborou uma reflexão sobre o pensamento de Ursula K. Le Guin sobre a tecnologia.

Cultura // Oráculo da Mente
por Gilles Pedroza Leite
Fevereiro, 2025

Em uma resenha interessante e favorável de Changing Planes, o crítico argentino afirma que, como Le Guin não é uma escritora de ficção científica "hard", “a tecnologia é cuidadosamente evitada”. Acrescentei uma nota de rodapé na minha tradução do artigo e aqui está essa nota expandida — porque esse assunto realmente está me incomodando.

Ficção científica hard trata de tecnologia, e ficção científica soft não tem nenhuma tecnologia, certo? E meus livros não têm tecnologia porque eu só me interessei por psicologia, emoções e outras coisas “moles” assim, certo?

Errado. Como pode haver ficção científica genuína, de qualquer tipo, sem conteúdo tecnológico? Mesmo que o interesse principal não seja engenharia ou o funcionamento de máquinas — e, como a maioria dos meus livros, esteja mais interessado em como mentes, sociedades e culturas funcionam — ainda assim, como alguém pode criar uma história sobre o futuro ou sobre uma cultura alienígena sem descrever, implícita ou explicitamente, sua tecnologia?

Ninguém pode. E eu não consigo imaginar por que alguém tentaria.

A tecnologia é a maneira como uma sociedade lida com a realidade física: como as pessoas obtêm, conservam e preparam alimentos, como se vestem, quais são suas fontes de energia (animal? humana? água? vento? eletricidade? outras?), com o que constroem e o que constroem, como é sua medicina — e assim por diante. Talvez pessoas muito etéreas não se interessem por essas questões mundanas e corporais, mas eu sou fascinada por elas, e acho que a maioria dos meus leitores também é.

A tecnologia é a interface ativa do ser humano com o mundo material.

Mas a palavra é constantemente mal utilizada para significar apenas as tecnologias extremamente complexas e especializadas das últimas décadas, sustentadas por uma exploração massiva tanto dos recursos naturais quanto dos humanos.

Esse uso da palavra não é aceitável. “Tecnologia” e “alta tecnologia” não são sinônimos, e uma tecnologia que não é “alta” não é necessariamente “baixa” em nenhum sentido significativo.

Fomos tão dessensibilizados por cento e cinquenta anos de progresso técnico incessante que pensamos que nada menos complexo e chamativo do que um computador ou um bombardeiro a jato merece ser chamado de “tecnologia”. Como se o linho fosse a mesma coisa que o linho cru — como se papel, tinta, rodas, facas, relógios, cadeiras, comprimidos de aspirina fossem objetos naturais, nascidos conosco como nossos dentes e dedos — como se panelas de aço com fundo de cobre e coletes de lã feitos de vidro reciclado crescessem em árvores e pudéssemos simplesmente colhê-los quando estivessem maduros...

Uma maneira de ilustrar que a maioria das tecnologias, na verdade, são bem “altas” é se perguntar, diante de qualquer objeto feito pelo homem: Eu sei como fazer um desses?

Qualquer pessoa que já tenha acendido um fogo sem fósforos provavelmente desenvolveu um respeito adequado pelas tecnologias “baixas”, “primitivas” ou “simples”; qualquer um que já tenha acendido um fogo com fósforos deveria ter inteligência suficiente para respeitar essa notável invenção de alta tecnologia.

Eu não sei como construir e alimentar uma geladeira ou programar um computador, mas também não sei como fazer um anzol ou um par de sapatos. Mas eu poderia aprender. Todos nós podemos aprender. Essa é a parte fascinante das tecnologias. Elas são aquilo que podemos aprender a fazer.

E toda ficção científica, de um jeito ou de outro, é tecnológica. Mesmo quando é escrita por pessoas que não sabem o que a palavra significa.

Ainda assim, concordo com o meu crítico que eu não escrevo ficção científica hard. Talvez eu escreva ficção científica fácil. Ou talvez a parte difícil esteja por dentro, oculta — como ossos, em vez de um exoesqueleto...

— Ursula K. Le Guin, 2005

Ler mais