A vida difícil das pessoas Solteiras

É como se a espiral tivesse girado e chegamos a um lugar pior: depois de anos em que as pautas feministas vinham sendo muito discutidas e de alguma forma as demandas pareciam ter sido escutadas — neste âmbito, por homens que nos enxergam como iguais, que escutam nossas necessidades, que respeitam nossas escolhas, que entendem e buscam parar de repetir comportamentos violentos —, os homens houvessem percebido que essas concessões, ao final, não são tão proveitosas para eles.

Cultura // Oráculo da Mente
Por Dalila Coelho
Dezembro, 2023

Você também sente que a vida afetiva das pessoas solteiras piorou nos últimos anos? não sei como está a percepção para os homens, mas para mim, mulher cis que já se entendeu e se aceitou como hétero, sinto que, apesar dos muitos avanços que tivemos nos últimos tempos na autonomia feminina, no debate dos machismos diários e na aceitação em bancar os próprios desejos, o cenário só piorou — e muito.


Eu sou jornalista, artista, fotógrafa e pesquisadora e gosto muito de falar de amor. eu pesquiso relacionamentos, amor romântico e heterossexualidade há alguns anos, iniciei um pequeno blog e podcast sobre o tema durante a pandemia e investigo no mestrado como a pandemia afetou a vida amorosa das pessoas. No último ano, participei de uma residência artística e desenvolvi um projeto sobre amor e sexo, em que fotografei e produzi autoficções sobre meus relacionamentos amorosos, e agora estava doida para voltar a escrever abertamente sobre esse tema que me move tanto. aí rolou esse match entre eu e a complete e estarei por aqui nos próximos tempos para falar de amor, mas sem romantizar ou ser piegas. Quero usar esse espaço para compartilhar algumas reflexões e trazer discussões sobre como nos relacionamos nos dias de hoje e o que as novas tecnologias, a cultura e as redes sociais têm a ver com tudo isso.

E para entrar no assunto que quero chegar, vou ter que começar confessando algo: eu sou viciada em reality show de relacionamento. quase nada mais me pega nos streamings, além dos realities com roteiros cada vez mais complexos e apelativos. passar 10 dias conversando com não sei quantas pessoas através de uma parede e só poder ver a cara de alguém se vocês dois toparem se casar dali 28 dias? um ex seu sair do mar de surpresa e vocês terem que passar um mês em uma mansão na praia com mais 20 pessoas que já se pegaram com o objetivo único de gerar confusão, sem prêmio nem nada? fazer uma troca entre casais em que uma pessoa quer se casar e a outra não, e ir morar com um desconhecido por 3 semanas para descobrir se você quer mesmo se casar com seu parceiro? claro! por que não?

Por mais que beirem o sensacionalismo, sinto que essas séries são um bom retrato da sociedade atual e de como as dinâmicas de relacionamento têm se estabelecido, evidenciando como as regras da heteronormatividade operam e se atualizam. fazendo uma retrospectiva do que pude observar nos últimos anos, é chocante o quanto as relações de poder têm se atualizado e sido refinadas, estabelecendo de maneira quase implícita dinâmicas de relacionamento ainda piores, por mais que tenhamos vivido uma ampliação no debate e enfrentamento de problemas apontados pelos feminismos.


Ao recapitular o que vi nos últimos anos, notei uma mudança significativa no comportamento masculino em resposta a algumas das demandas levantadas pelas mulheres. em 2019, quando a ex-bbb hana khalil entrou no de férias com o ex celebs, já dava para perceber uma mudança geral entre os participantes: ao invés do até esperado casting de homens machistões e mulheres um tanto coniventes com tais comportamentos, vimos mulheres que se impunham e apontavam os desconfortos gerados pelos outros participantes, e homens aparentemente mais sensíveis, desconstruídos e dispostos a escutar e repensar suas atitudes. hana foi uma das principais em chamar os homens para a responsabilidade e apontar os erros e comportamentos problemáticos e, ao invés de ser taxada como “mulher encrenca”, ou “que não aceita uma brincadeira”, era respeitada, ouvida e ecoada por outras e outros participantes do programa.


E aí corta para a última temporada de casamento às cegas brasil, especialmente o episódio de reencontro. tendo assistido ou não, aqui vai um breve resumo para entender aonde quero chegar com isso: cinco casais ficaram noivos, mas só dois saíram casados do altar; os homens que ao final não se casaram, por alguns momentos durante a experiência pareciam interessados em construir uma relação sólida com as mulheres que pediram em casamento, mas na maior parte do tempo eram evasivos, manipulavam, estabeleciam uma comunicação confusa e, ao serem questionados, reagiam de forma leviana, algo mais ou menos como “te acho uma mulher incrível e te desejo tudo de bom, não entendo porque você está me tratando com tanta raiva”.

Há, da parte deles, uma recusa em escutar o que está sendo dito: o problema não está no relacionamento não ter dado certo. elas não estão com raiva porque não foram escolhidas, estão com raiva porque foram levadas a acreditar o contrário o tempo inteiro. não é sobre a rejeição — ninguém é obrigado a permanecer com alguém até o fim, ninguém é proibido de mudar de ideia. a demanda é por diálogo honesto, franco, aberto. por uma escuta verdadeira e, principalmente, por ser real nas suas intenções. porque o papo que é criado para a conquista vai só até a segunda página, mas a forma como se estabelece a relação é o que realmente importa, seja em um relacionamento casual, despretensioso, seja firmando um compromisso sério.

O que acontece, na visão da psicanalista maria rita kehl (que tirei de um livro que indico muito a leitura), é que, com mais mulheres experimentando a autonomia de tomar frente dos próprios desejos e apontar seus descontentamentos, os homens passaram a experimentar o lugar de narcisos. olha só:

“ao se lançar em iguais condições, em relação ao homem, na conquista de seu prazer sexual, a mulher também ficou sujeita a outra lei: a do desejo do outro.

lei que só faz sentido quando seu próprio desejo entra em cena (que me importa o desejo do outro diante do silêncio do meu?). ficou também sujeita a competir com o homem num terreno que é tradicionalmente dele e assim — o que parece até hoje surpreender as mulheres — jogar o homem por sua vez na condição narcisista. que a mulher lhe revele seu desejo, que ele experimente cada vez com mais frequência o lugar do desejado, que o preço do desejar venha sendo dividido entre homens e mulheres — são privilégios dos quais o homem ainda não terminou de gozar um tanto sadicamente, como se dissesse à companheira: ‘você não queria? agora, toma!’, recusando a ela a antiga posição idealizada conferida pela tradição.” (maria rita kehl. a mínima diferença: masculino e feminino na cultura.)

É como se a espiral tivesse girado e chegamos a um lugar pior: depois de anos em que as pautas feministas vinham sendo muito discutidas e de alguma forma as demandas pareciam ter sido escutadas — neste âmbito, por homens que nos enxergam como iguais, que escutam nossas necessidades, que respeitam nossas escolhas, que entendem e buscam parar de repetir comportamentos violentos —, os homens houvessem percebido que essas concessões, ao final, não são tão proveitosas para eles. e então vemos uma horda de homens que chegam a ser ótimos no discurso e se apresentam como igualmente interessados e alinhados às expectativas — seja nas cabines do casamento às cegas ou nas conversas nos aplicativos, redes sociais ou no pé da orelha —, mas que na vida real são mais desinteressados, mais irresponsáveis, mais dúbios. em resposta à essa demanda por igualdade, o comportamento masculino, mesmo que inconscientemente, visa muitas vezes manter uma distância para que ainda seja possível conservar algum poder.

A percepção que fica é de que é um grande esforço para os homens aceitarem e se atraírem pelas mulheres como elas são de verdade, enquanto elas fazem muito esforço para serem aceitas — e muitas vezes se veem fadadas a tolerar o quase intolerável, por ser a única oferta disponível. é como se querer dialogar, alinhar expectativas e entender os sentimentos do outro fosse querer demais, uma sobrecarga para a capacidade masculina, mesmo quando você se inscreve voluntariamente para participar de um programa de casamento.



Dalila Coelho é
Artista e pesquisadora. Formada em Comunicação Social, desenvolve trabalhos em fotografia analógica e paralelamente faz mestrado em Ciências da Comunicação na ECA/USP, onde pesquisa relacionamentos na contemporaneidade. No último ano, foi selecionada para a 8ª Bolsa Pampulha e desenvolveu na residência artística a série Ode, unindo fotos, vídeos, textos e áudios para criar narrativas sobre relações amorosas, sexualidade e disputa de poder. Dentre os principais trabalhos estão a série É verão o ano inteiro, o fotolivro BELEZA e o blog Falo de Amor.

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