Fundada por Mônica Sampaio, a Santa Resistência destaca-se no cenário nacional da moda slow fashion, trazendo consigo um propósito claro e profundo.
Fundada por Mônica Sampaio, a Santa Resistência destaca-se no cenário nacional da moda slow fashion, trazendo consigo um propósito claro e profundo. Mônica, que trocou a engenharia elétrica pela moda, é baiana de São Félix, no Recôncavo Baiano, e construiu sua carreira inicialmente em empresas como a extinta Varig e no Exército Brasileiro, onde enfrentou barreiras de machismo e racismo.
Em 2017, impulsionada por seu desejo de criar, lançou a Santa Resistência, que rapidamente se tornou reconhecida por suas peças leves e vibrantes. As criações da marca, que incluem túnicas estampadas e vestidos longos, são profundamente inspiradas na riqueza cultural da África e nas raízes nordestinas da estilista. Alinhada ao conceito de slow fashion, a Santa Resistência valoriza o tempo e a qualidade na produção de roupas atemporais, desenhadas e confeccionadas com cuidado e sem pressa, refletindo uma filosofia de moda consciente e duradoura.
Na próxima edição da São Paulo Fashion Week, Mônica traz a coleção "Manifesto Ancestral", celebrando as raízes do país.
Conversamos com Mônica Sampaio para entender um pouco mais sobre seu processo criativo e projetos futuros. Acompanhe abaixo a entrevista completa.
01. Mônica, você começou sua jornada na moda por uma necessidade pessoal. Poderia nos contar um pouco mais sobre como essa necessidade se transformou em uma paixão e, eventualmente, em uma carreira?
Comecei minha jornada pessoal de uma maneira que pode parecer clichê, mas foi porque eu realmente não encontrava algo no mercado que combinasse comigo, que tivesse a minha cara. Embora eu não fosse da área de moda, sempre fiz minhas próprias roupas e desenhei, algo que já estava presente em mim. Quando decidi mudar de carreira, foi também por uma necessidade pessoal: buscar mais qualidade de vida e dar mais atenção à minha família. Após um período muito intenso de trabalho e uma longa trajetória no meio corporativo como engenheira, uni o útil ao agradável. Trouxe à tona minha paixão e minha criatividade intuitiva, e criei aquilo que eu queria vestir, mas não encontrava. Percebi que esse era o nicho no qual eu deveria entrar, e deu muito certo.
02. Quais foram os principais desafios que você enfrentou ao começar a criar suas próprias roupas, especialmente como uma mulher negra em um mercado que muitas vezes não representa a diversidade?
Bem, os maiores desafios que enfrentei — e falo isso sempre em mentorias e palestras — são relacionados ao valor que dou à teoria de tudo o que faço. Acredito que isso é muito importante. Começar em qualquer área de forma autodidata pode ser relevante, e você pode alcançar o sucesso se for bom no que faz e se aprimorar constantemente, mas é necessário se esforçar ainda mais. Um dos meus grandes desafios foi começar na moda em uma idade mais avançada, com mais de 40 anos, sem ter a base teórica necessária. Portanto, meu grande desafio foi correr contra o tempo para aprender e conhecer as pessoas certas da forma mais rápida possível.
Além disso, como mulher negra, percebo que as mudanças ocorrem de maneira muito lenta. Quando se trata de temas relacionados à racialidade e diversidade, as pessoas geralmente não querem ouvir. Elas podem fazer discursos sobre inclusão e mostrar que estão interessadas em promover a diversidade, mas a realidade é que muitas vezes não estão dispostas a ouvir de verdade. Elas não acreditam que é necessário mudar o sistema, e se o sistema atual é favorável a elas, não há motivação para alterar essa situação.
03. O que a motivou a fundar a Santa Resistência em 2015? Poderia compartilhar conosco a visão inicial da marca e como ela evoluiu ao longo dos anos?
Minha motivação para criar a Santa Resistência foi inicialmente bastante egoísta. Eu queria melhorar minha qualidade de vida e parar de trabalhar em um ambiente que já não me satisfazia. Eu era militar, chefe da engenharia industrial central do Exército, e enfrentava uma jornada de trabalho muito longa. Além disso, tinha uma filha que precisava de mim, e eu sentia que precisava estar mais presente para ela. Então, decidi ser um pouco egoísta e buscar uma mudança. Ao mesmo tempo, eu precisava de uma fonte de renda. Assim, uni minha paixão a uma oportunidade de mudar de carreira, algo que eu estava amadurecida para fazer. Muitas pessoas, especialmente da minha família, me incentivaram, embora muitos achassem loucura trocar uma situação segura por empreender, principalmente no Brasil. Minha motivação foi genuína. Acreditei profundamente no que estava fazendo e tinha certeza desde o início de que iria dar certo. O desejo de alcançar uma melhor qualidade de vida e realizar essa mudança foi o que me impulsionou.
04. As suas criações são fortemente inspiradas na África e nas suas raízes nordestinas. Como essas influências se manifestam nas suas peças e por que elas são tão importantes para você?
Essa questão das influências é muito pertinente, especialmente considerando o desfile que vou apresentar agora no São Paulo Fashion Week 58. Quando falamos de ancestralidade, observamos que muitas pessoas têm uma conexão clara com suas origens. Por exemplo, em uma roda de amigos, você vê pessoas com sobrenomes europeus e, ao conversar com elas, elas sabem de onde vieram seus avós, bisavós ou tataravós — se vieram de Portugal, Alemanha, Suíça, Espanha, por exemplo. Elas têm essa rastreabilidade. No entanto, quando falamos de nós, negros, essa rastreabilidade se perde. A forma como chegamos ao Brasil foi através da escravidão, com povos sendo retirados de suas terras, agrupados e colocados em navios. Nesse processo, muitos nomes foram apagados, mães e filhos se perderam e não havia mais uma busca ou um contato com as origens. Isso é algo que sinto muito falta. Quando falo das minhas raízes nordestinas, estou me referindo à minha ancestralidade, mas é algo próximo a mim, que vejo nas referências da minha família, nas histórias que ouvi e vivenciei, nas cidades que visitei. No entanto, quando se trata da África, da qual eu nunca pisei, sinto-me como uma mulher negra na diáspora sem conhecimento sobre meus antecessores ou suas origens. O desfile que vou apresentar em São Paulo vai abordar muito essa questão.
05. A Santa Resistência busca ser um veículo de pertencimento e acolhimento no vestir. Como você enxerga o impacto da sua marca na vida das mulheres negras e outras minorias?
A Santa Resistência fala muito sobre pertencimento, e isso se reflete na forma de vestir. Vejo isso claramente. Uma das coisas que mais me motiva é ver as pessoas usando minhas roupas e se identificando com elas, especialmente aquelas que admiro. Quando mulheres pelas quais tenho grande admiração, especialmente mulheres negras, gostam do meu trabalho, isso me enche de orgulho. Embora eu crie peças para todos — mulheres, homens, e qualquer pessoa que se identifique com elas —, eu sou uma mulher negra. Então, quando vejo alguém que se parece comigo vestindo minhas criações e admirando meu trabalho, é algo que me traz uma satisfação imensa. Isso me dá a certeza de que estou no caminho certo e me enche de felicidade.
Como disse Maya Angelou: "Você não pode controlar todos os eventos que acontecem com você, mas pode decidir não ser reduzido por eles." Ver sua arte reconhecida por quem você admira é a prova de que a jornada é mais importante do que os desafios enfrentados.
06. A Santa Resistência segue o conceito de slow fashion. Pode nos explicar como esse conceito se reflete no seu processo criativo e de produção?
Desde o início, quando criei a Santa Resistência, eu sabia exatamente como queria que a marca fosse e como gostaria que ela existisse. Os valores da marca sempre incluíram a ideia de ser uma marca feita com alma, com calma, respeitando uma cadeia de produção justa e transparente. Muito antes de o ESG se tornar um tema central nas discussões, eu já tinha essa consciência e sabia o que queria.
Faço parte do movimento "Sou de Algodão", do movimento de sustentabilidade e do Fashion Revolution. Portanto, a Santa Resistência está em total coerência com esses princípios, respeitando não apenas o processo de criação e o tempo necessário, mas também garantindo que cada modelo seja produzido em quantidades limitadas. Equilibro o estoque para evitar que peças não vendidas voltem para a natureza. Essa preocupação sempre esteve presente em minha abordagem.
07. O algodão e o linho são materiais-chave nas suas coleções. Como você escolhe os materiais para suas peças e qual a importância deles na criação de roupas atemporais?
Eu não consigo eliminar completamente o uso de poliéster nas minhas coleções, mas já estou próxima de alcançar 75% de algodão e linho. Essa é a meta que busco. Quando falamos em algodão responsável, sabemos que o Brasil é um dos maiores expoentes nesse setor, sendo o maior exportador mundial de algodão responsável. Como mencionei anteriormente, faço parte do mercado de algodão e percebo uma valorização significativa, especialmente por parte dos clientes, em relação aos tecidos naturais. As pessoas estão cada vez mais conscientes da importância de utilizar tecidos que agridem menos o meio ambiente. Não só por causa do conforto e do caimento das peças, que ficam bonitas e agradáveis ao toque, mas também por entenderem o impacto positivo que esses tecidos têm no meio ambiente.
08. A coleção apresentada na edição N52 da SPFW incluiu rendas guipure, um trabalho manual delicado. Qual é o significado desse trabalho artesanal para você e como ele homenageia sua família?
Sim, eu usei rendas nesta coleção e falei bastante sobre manualidades, incorporando fuxico, pois minha família é do Recôncavo Baiano. Hoje em dia, técnicas como crochê, renda e fuxico são valorizadas e consideradas nobres. Não apenas por conferirem um toque de sofisticação às peças, mas também porque movimentam uma cadeia econômica significativa. Muitas dessas manualidades, anteriormente subestimadas, estão agora recebendo o reconhecimento que merecem. É um grande orgulho para mim ver esse boom, e eu gostaria de incorporar ainda mais esses elementos na Seção da Resistência. Acredito que eles refletem muito sobre o Brasil e sobre nossa moda nacional.
09. A sustentabilidade é um pilar fundamental da Santa Resistência. Quais práticas sustentáveis você adota na produção das suas peças e como você educa suas clientes sobre a importância desses processos?
O desenvolvimento sustentável faz parte das diretrizes estratégicas e da essência da nossa marca. Desde 2019, quando comecei a participar do movimento Sol de Algodão, e em 2020, lancei a coleção Trajetos em parceria com a Lunelli, utilizando apenas tecidos de coleções passadas que seriam descartados. Em 2022, fui selecionada para a segunda edição do movimento ELLE Sustentabilidade, o que aprofundou a integração desses valores na minha marca.
Assim, quando falo sobre isso, é um dos pilares da Santa Resistência. Hoje, quem veste a Santa e busca nossa marca compartilha desses valores e entende a nossa grande preocupação com a sustentabilidade, especialmente em relação aos nossos parceiros. Posso afirmar que 100% dos nossos parceiros em termos de tecidos são certificados e que esses tecidos podem ser rastreados. Portanto, isso é algo que valorizo muito.
10. Além de criar moda, sua marca tem um papel social importante. Como você enxerga o impacto da Santa Resistência na comunidade e na sociedade em geral?
Vejo o impacto social da Santa Resistência não apenas em termos de visibilidade e pertencimento, mas também nas possibilidades que a marca representa. Pessoas que veem a Mônica Sampaio e a Santa Resistência no São Paulo Fashion Week podem se sentir inspiradas e acreditar que é possível estar lá também. Quando eu estava na faculdade, fazer moda parecia algo muito distante; não me via representada, não conhecia ninguém do setor e não tinha uma designer de moda negra como referência. Isso não existia na minha época. Hoje, estando lá, mostro que é possível e busco trabalhar com coletivos de costureiras. Atualmente, colaboro com mulheres da Maré e, há duas edições do São Paulo Fashion Week, tenho trabalhado com elas. Minhas modelistas e outras pessoas da equipe são mães solo. Assim, a Santa Resistência movimenta diretamente oito famílias e, indiretamente, impacta cerca de 80 a 90 pessoas no meu entorno. Isso é significativo para uma marca que ainda é relativamente nova e pequena.
11. Que conselho você daria para jovens estilistas, especialmente aqueles que sentem que não são representados na moda mainstream?
O conselho que eu dou é buscar conhecimento. Quando falo em conhecimento, não me refiro apenas ao conhecimento teórico, mas também àqueles aspectos práticos relacionados ao que você deseja fazer. Se você quer trabalhar com moda, é essencial dominar essa área: entender a história da moda, conhecer os estilistas que vieram antes, aprender o vocabulário específico, conhecer os tecidos e entender a sustentabilidade. Outro aspecto importante é expandir seu network. Identificar e conectar-se com pessoas que podem abrir caminhos para você alcançar seus objetivos também é crucial. Portanto, quando falo em conhecimento, estou me referindo a três pilares: o conhecimento teórico, o entendimento profundo da área de interesse e o desenvolvimento de uma rede de contatos. Esse é o conselho que dou: busque conhecimento.