A mostra reúne obras inéditas que transitam entre escultura, instalação e escrita, reafirmando a vocação de Adjiman em trabalhar a fronteira entre linguagens.
De 2 de agosto a 24 de setembro de 2025, a Galeria Luis Maluf, em São Paulo, apresenta a exposição Chão é outra palavra para voo, primeira individual de Deco Adjiman no espaço, sob curadoria de Ana Carolina Ralston. O título, quase enigma, sugere um paradoxo: o chão, normalmente associado ao peso, à gravidade e ao limite, é aqui convocado como superfície de partida, trampolim para a imaginação. A mostra reúne obras inéditas que transitam entre escultura, instalação e escrita, reafirmando a vocação de Adjiman em trabalhar a fronteira entre linguagens. A proposta central é pensar o deslocamento como matéria estética. Caminhar, errar, vagar — verbos que, em sua obra, tornam-se práticas artísticas.
Logo na entrada, a instalação Dose de doze estabelece o tom. Doze garrafas guardam trechos literários escolhidos por amigos do artista. O gesto é simples e simbólico: memórias e leituras tornam-se líquidos preservados em recipientes de vidro. O livro, aqui, abandona sua função de objeto a ser lido e assume a condição de relíquia, de gesto compartilhado. Trata-se de um exercício de afeto e comunidade, em que palavra e objeto se fundem.
Adjiman é conhecido por sua habilidade em transformar materiais naturais, pedras, folhas, galhos, terra em arte. Mas seu gesto não é mimético nem ornamental. Ao contrário, é um exercício de escuta da paisagem. Cada material traz em si uma memória de lugar. Ao ser deslocado para a galeria, carrega o peso da caminhada que o coletou, do tempo geológico que o moldou, da experiência subjetiva que o transformou. Em Chão é outra palavra para voo, esse diálogo se intensifica. O artista não apenas apresenta objetos, mas propõe geografias subjetivas: cartografias que não se reduzem a mapas, mas que traduzem experiências de deslocamento e de pertencimento.
Nascido em São Paulo em 1979, formado em Comunicação Social pela FAAP, Deco Adjiman construiu sua trajetória como artista e poeta explorando o vínculo entre palavra e visualidade. Em mostras anteriores, como “eu,mesmo” (2016) e “ps.: nos achamentos do chão também foram encontrados os mistérios do voo” (2022), já se anunciava sua fascinação pela tradução, não apenas entre línguas, mas entre linguagens.
Entrevista: Poética da Errância
Sua obra parte muitas vezes de objetos brutos, encontrados em caminhadas. Como se dá esse momento de “encontro” entre você e o material? O que determina que um objeto possa se tornar obra?
Depois, no ateliê, isso se desenrolou de uma forma até diferente do que eu tinha pensado. Mas foi uma caminhada que já começou com alguma intenção. Outras vezes eu caminho apenas pela caminhada, pelo exercício. Acho que, ao caminhar, principalmente sozinho, durante longos períodos, a gente entra em uma espécie de pesquisa do subjetivo, de entendimento do nosso interior. O cansaço também provoca certos movimentos no pensamento. E é nesse processo que vou desenvolvendo ideias, criando histórias para contar depois. Tenho, por exemplo, uma série de trabalhos chamada Pinturas de Paisagem, que nasceu justamente disso: da ideia de pintar a paisagem que percorri. Para isso, uso sempre elementos que encontro na caminhada, como pedras, terra, da qual extraio a coloração para produzir a tinta. Depois, aplico esse material sobre suportes, normalmente madeira.
Você fala da errância e da deriva como atos artísticos. Como o ato de caminhar molda seu olhar e influencia o ritmo do seu trabalho?
O tempo do caminhar é lento. Não é uma atividade que eu faço com pressa, nem correndo. Não é uma atividade física esportiva, de rendimento. Eu não procuro rendimento. O tempo é o tempo do meu corpo, e acho que, de certa forma, isso se reflete na minha prática também. Quase todo o trabalho sou eu mesmo quem faz, com exceção de poucas coisas na exposição. Por exemplo, algumas garrafas que foram gravadas a laser, eu mando fazer. Mas todo o resto são coisas que eu mesmo executo, às vezes com algumas limitações técnicas, com as limitações do meu conhecimento.
Eu também sou marceneiro, mas, claro, tenho minhas limitações. Ainda assim, eu prefiro sempre eu mesmo fazer, em vez de passar para outras pessoas. Acho que essa questão do tempo e do ritmo fica clara no trabalho. Dá para perceber que houve mão ali, sabe? Sente-se a presença da mão no trabalho — é algo muito pouco industrial, muito orgânico. Eu busco formas orgânicas, então acredito que esse tempo da vida, da caminhada, da natureza, também aparece no que faço.
Na obra “eu,mesmo” (2016) você explorou a tradução entre línguas e linguagens. Como essa investigação evoluiu até chegar à exposição atual, “Chão É Outra Palavra para Voo” (2025)?
É, na minha trajetória, eu venho primeiro do interesse pela literatura. Como consumidor de arte, o que sempre consumi a vida inteira foi literatura. Só depois fui desenvolvendo interesse pelas artes visuais, e isso não é tão antigo assim, faz cerca de dez anos. Então, minha prática artística tem esse tempo: dez anos. No começo, era uma prática muito ligada à literatura, em que a palavra estava muito presente. Essa exposição que você citou, eu, mesmo outro, era um projeto intencional de traduzir a poesia para a linguagem visual, para as artes visuais. Eram poemas, ou apropriações da literatura, que eu levava para a materialidade.
Com o tempo, fui deixando um pouco a palavra e me voltando mais para a madeira, para o objeto, para a terra. Mas, nessa exposição atual, resolvi resgatar a palavra, e ela vem forte. Há bastante trabalho com texto, pelo menos dois que repetem essa vontade de traduzir o poema de forma literal. Tem, por exemplo, o poema do Drummond No meio do caminho, numa versão material; um verso de Fernando Pessoa; e também uma espécie de tradução ou adaptação de Grande Sertão: Veredas. São citações de autores com quem convivo e que atravessam minha prática. E, além delas, outras formas de usar a literatura nas artes visuais, algo que sempre me interessou muito e que tenho explorado bastante, agora voltando a explorar com a palavra em si, diretamente.
É difícil dizer assim, porque é uma coisa um pouco instável e incerta, né? Às vezes acontece de eu fazer uma caminhada com alguma intenção já um pouco pré-determinada. Por exemplo, eu estava no Parque Nacional de Itatiaia, em uma residência artística há uns três meses, e lá tem umas montanhas altas, alguns dos cumes mais altos do Brasil. Fui intencionalmente com um barbante bem longo, com a ideia de subir até esses cumes e dar uma espécie de abraço usando esse barbante. Então já fui com esse material, fiz esse abraço, peguei um pouco da terra e, lá do alto da montanha, também peguei uma pedra.
É, também é um pouco fluido, um equilíbrio entre a minha limitação do fazer e o que o material me permite, né? Desde o uso da madeira, por exemplo: cada madeira possibilita um tipo de feitura, uma forma diferente de ação sobre ela. Agora também tenho experimentado bastante com pintura de pigmentos naturais. Eu não sou pintor nesse sentido mais clássico, mas fui aprendendo que cada tipo de terra permite um modo de pintura distinto. Muitas vezes, é apenas um simples preenchimento do espaço que a terra possibilita; em outras, ela permite até escrever com ela.
Então, acabo escrevendo algumas palavras com terra. Acho que a forma vai se adaptando de acordo com o material. Uso muito o que está à minha disposição. Dificilmente vou atrás de algo específico, como “preciso daquele material”. Trabalho bastante com madeira de reuso, que sobra da marcenaria; com coisas que encontro em caçambas, nas praias ou no mato. Existe essa ideia de comprar o mínimo possível, para não impactar tanto, mas também porque convivo com esses materiais, e eles acabam me contaminando, me direcionando. Eles mesmos vão indicando para onde querem ir. Acho que é um pouco isso: perceber o material e deixar que ele conduza o trabalho.
O ato de caminhar como pesquisa subjetiva remete a tradições artísticas como o flâneur. Quais referências, artísticas ou literárias, alimentam esse aspecto do seu trabalho?
Sim, o Charles Baudelaire com certeza é uma grande referência. Eu confesso que esse movimento da Alemanha eu não conheço, mas gosto muito dos poetas franceses, especialmente de Baudelaire e do Arthur Rimbaud. Acho que o Rimbaud tem uma força única: escreveu muito jovem, e de uma forma tão rompedora. Depois, traz toda essa questão da errância, da deriva, da viagem. Ao deixar de ser poeta, ele faz uma peregrinação pela África até se tornar traficante de armas. A biografia dele é muito interessante, e ele morre super cedo. Além disso, figuras como Gandhi também são inspirações para mim, sempre foram uma referência.
Quando comecei a estudar a caminhada, encontrei a Marcha do Sal, que é um episódio muito significativo da trajetória dele. Entre os livros formadores para mim está, com certeza, Grande Sertão: Veredas. É uma travessia, “Travessia” é a última palavra do romance, que começa com “Nonada” e termina com esse deslocamento. Durante toda a saga, há essa ideia da travessia. Outro clássico que me influenciou muito foi On the Road, do Jack Kerouac. Apesar de críticas mais atuais à linguagem e ao olhar que os autores tinham na época, quando li o livro, ainda jovem, ele me jogou na estrada, me deu essa vontade de caminhar.
Hoje em dia, tenho uma referência que admiro muito: o Francesco Careri, filósofo italiano que tem estudado a caminhada e os deslocamentos nas artes visuais. Ele fez um compêndio muito interessante de artistas que trabalham a caminhada como processo artístico. Um livro dele que gosto bastante é Walkscapes, em que analisa desde o começo da humanidade até hoje como a caminhada nos conduziu, passando pelos povos nômades e por toda uma perspectiva histórica.
Há uma frase dele que gosto muito e que dialoga com o que falávamos sobre o tempo. Ele diz: “Quando a gente vai do ponto A ao ponto B numa linha reta, a gente ganha tempo. Quando a gente vai por qualquer outro caminho, a gente ganha espaço.” Essa ideia de “perder tempo para ganhar espaço” me interessa bastante, porque expande o espaço geográfico e, de alguma forma, também o espaço interno.
Em Chão É Outra Palavra para Voo, você investiga a relação entre corpo e espaço, e como indivíduos se projetam em paisagens. Como essa abordagem se materializou nas peças da exposição?
Ah, eu acho que praticamente em todos os trabalhos, e isso deve ser uns 80% da exposição, tem terra, tem chão. Eu gosto mais de chamar de chão do que de terra, porque o chão tem esse sentido de elemento que nos conecta, que nos sustenta e que nos permite caminhar, explorar, viver. Então, a geografia está presente ali. A paisagem atravessa totalmente o trabalho. Para mim, a experiência de entrar na exposição é como andar pelos lugares por onde caminhei. É levar essa paisagem para dentro da galeria, para dentro desse espaço que, embora não seja exatamente um cubo branco, já que tem alguns recortes, ainda é um espaço mais clássico de exposição de arte. A ideia é trazer a floresta, a praia, as montanhas. Acho que tudo isso está um pouco lá.
Deco Adjiman - Chão é outra palavra para voo
2 agosto a 24 setembro
10h às 19h
Luis Maluf Galeria
Rua Brigadeiro Galvão, 996
Barra Funda
São Paulo, SP Brasil