Como parte da estreia da galeria pernambucana Christal, as obras do artista estarão presentes no programa Brasil Contemporâneo.
A Christal Galeria de Arte (Recife-PE) participa pela primeira vez da ArtRio, edição 2024, com Ziel Karapotó. Suas obras estarão no Pavilhão Mar, no programa Brasil Contemporâneo, com curadoria de Paula Borghi, dedicado a galerias que representam artistas residentes nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul.
Ziel Karapotó, natural de Terra Nova, São Sebastião, iniciou sua carreira em Artes Visuais na Universidade Federal de Pernambuco em 2010. Sua trajetória, marcada pela auto-afirmação e resistência através da arte, ganhou destaque com sua primeira exposição individual em 2022 na Cristal Galeria. Karapotó se destacou no circuito artístico com o curta-metragem O Verbo se Fez Carne e a participação no pavilhão indígena Hãhãwpuá na Bienal de Veneza. Atualmente, está envolvido na curadoria do Museu Indígena em Santo Inês, Bahia, e se prepara para apresentar duas novas obras na Arte Rio 2024, em parceria com Olinda Tupinambá.
Nas suas criações, Ziel Karapotó investiga e reinterpreta tradições, o sagrado e o imaginário, abordando temas como colonialismo e antirracismo com uma visão crítica e atemporal.
Conversamos com Ziel Karapotó para entender um pouco mais sobre o processo criativo, suas referências e expectativas para a Art Rio 2024. Acompanhe abaixo a entrevista completa.
01. Ziel, como sua trajetória na comunidade Karapotó Terra Nova influenciou sua visão artística e suas criações?
Minha base de referência é a minha cultura, a relação com o meu povo e a minha cosmologia. Isso é fundamental e muito importante. No entanto, acredito que também é um resultado desse processo de transitar e estabelecer conexões, como uma flecha que atravessa vários contextos. É como uma raiz que se expande e chega a novos territórios, aprendendo com outros parentes e também com pessoas não-indígenas. É importante destacar que aprendemos muito ao nos relacionarmos não apenas com nosso povo e nossos parentes, mas também com outras pessoas em geral. No entanto, a relação com meu povo é a base para tudo.
02. Sua participação na 60ª Bienal de Veneza com a obra “Cardume II” foi um marco importante. Como essa obra reflete a conexão entre a arte contemporânea e a ancestralidade indígena?
Na verdade, não me preocupo muito em classificar se o meu trabalho é contemporâneo ou como será percebido. Acredito que fazemos o que sentimos e o que estamos experienciando no momento presente. Tudo é um processo que resulta das nossas vivências. A base do meu trabalho está nas referências do meu povo e na tecnologia tradicional, como a confecção de redes de pesca. Conto com a ajuda da minha mãe e dos meus parentes na criação das obras, que, apesar de serem muito atuais e abordarem questões como as notícias, violações e genocídio, também refletem a nossa realidade.
O que considero desafiador é encontrar o equilíbrio entre ser político e poético. Não me preocupo tanto com a questão temporal, mas sim com o equilíbrio entre a expressão política e a estética. Um dos grandes perigos é focar apenas na política e esquecer a força estética que possuímos. A obra "Cardume 2" tem o propósito de evidenciar nossas experiências e, ao mesmo tempo, destacar a tecnologia e a beleza presentes em tudo o que fazemos.
03. No filme “O verbo se fez carne”, há uma forte presença de narrativas sob a perspectiva indígena. Como foi o processo criativo desse filme, de construção da narrativa?
Eu sempre brinco que não sou o tipo de artista que fica contemplando o mundo ou o universo. As ideias vêm de forma espontânea, às vezes enquanto estou no ônibus, por exemplo. Em Recife, o trânsito é caótico, e eu gosto de pegar moto Uber para refletir. Quando estou na moto, em velocidade, olho para o céu e fico pensando nas coisas.
A construção da narrativa de O Verbo se Fez Carne foi muito espontânea. O que me inspirou foi o contraste que vi na minha comunidade, onde as tradições estavam sendo abandonadas e os parentes estavam se vestindo como se fossem de outro mundo, como “robozinhos”. Isso me chocou profundamente, especialmente ao ver meus primos, irmãos e tios nessa situação. Durante o trajeto de volta para Recife, pensei sobre o que poderia fazer para expressar esse impacto.
Senti como se estivesse relembrando uma memória do passado, associada à catequização e ao processo etnocida. Decidi que o filme seria uma forma de protesto, dizendo “não” ao que eu considero violento e errado, embora esses valores não sejam recentes. No entanto, também me preocupei para que a obra não fosse excessivamente violenta para o público. Quis trazer um equilíbrio entre o poético e o político, incorporando uma estética barroca na iluminação e na composição.
04. A arte indígena tem ganhado mais visibilidade nos últimos anos. Jaider Esbell, Gustavo Caboco, Glicéria Tupinambá, Daiara Tukano são alguns artistas que ganharam destaque nos últimos anos. Como você enxerga o papel dos artistas indígenas no cenário artístico contemporâneo?
Às vezes, fico refletindo sobre essa responsabilidade, que é muito significativa. A arte não é feita apenas porque somos herdeiros ou ricos; ela serve como uma ferramenta de luta, para possibilitar a continuidade e a manutenção da nossa cultura, lutar por nossos territórios e evidenciar para o mundo as questões que enfrentamos. Não se trata apenas das questões enfrentadas pelos povos indígenas, mas também dos desafios globais, como as questões ecológicas.
Entendo que estamos vivendo um momento em que uma geração compreende a arte como uma poderosa ferramenta para projetar nossa força, reivindicar nossos direitos e reescrever a história. Esse é um aspecto inédito na história da arte. Nosso grupo está comprometido em usar a arte para reescrever a narrativa histórica. A arte, muitas vezes, serve como uma ferramenta colonial que molda o imaginário do povo brasileiro sobre nós. Estamos recodificando essa narrativa, utilizando nosso domínio sobre esses códigos para recontar nossa própria história.
05. Você acredita que a arte pode ser uma forma de resistência e luta anticolonial? Como essa perspectiva se manifesta em seu trabalho?
Eu acredito que a arte é fundamental na construção de novas paisagens e territórios. Ela funciona como uma flecha certeira, criando imaginários e entendimentos sobre o mundo. No entanto, frequentemente vivemos uma negligência em relação à cultura, pois a arte tem o poder de formar visões e reflexões sobre diferentes povos e suas lutas. Quando um grupo indígena começa a expressar suas reflexões e compreensões sobre essa diversidade e esses contextos, isso rompe com a narrativa única sobre o que é ser indígena. Não se pode pensar que todas as mais de 300 etnias são iguais. É essencial desafiar esse entendimento homogêneo.
Esse é um dos pontos que a Bienal abordou, ao tratar da ideia de sermos estrangeiros em nosso próprio território. A população brasileira frequentemente não se reconhece como indígena ou só o faz de forma superficial, o que é problemático. A arte se torna uma ferramenta crucial para a salvaguarda de nossas identidades e territórios, funcionando como um escudo de proteção. A nossa arte, baseada em nossas cosmologias, espiritualidade e visão de mundo, é complexa e profunda.
A arte indígena é uma forma potente de luta hoje, e é fundamental que o movimento indígena reconheça isso. A arte, tanto no campo do audiovisual quanto das artes visuais, está projetando nossa imagem no Brasil e no mundo, desempenhando um papel político importante na articulação política e na mudança do imaginário do povo brasileiro sobre si mesmo.
Como alguém formado em artes visuais e estudioso do cenário da arte contemporânea nacional e internacional, vejo que a arte indígena está se destacando novamente no cenário da arte contemporânea do Brasil. Pela primeira vez em mais de 500 anos de colonização, a arte indígena está sendo construída e evidenciada com os indígenas como protagonistas. É crucial que as instituições compreendam isso e não apenas busquem a arte indígena para eventos e bienais, mas entendam que ela representa o novo e o relevante para o cenário artístico atual.
Muitas vezes, somos convidados para eventos e festivais, mas ainda há uma falta de compreensão por parte dos curadores e produtores sobre como expor adequadamente uma obra indígena. Esse é um desafio que precisamos enfrentar e superar.
06. Como a romantização e o exotismo na arte indígena influenciam a visibilidade e a valorização dos artistas indígenas no sistema da arte atual?
Muitas vezes há um olhar romântico sobre a arte indígena. Por exemplo, um artista indígena hoje pode se deparar com a dificuldade de ser visto apenas através de estereótipos. A arte, que também pode ser extrativista e branca, está tentando romper com esses padrões aos poucos. A questão é que, ao ocupar esse lugar estereotipado, o artista indígena pode ser visto de forma romantizada ou exotizada, o que, em alguns casos, pode levar a uma melhor remuneração ou visibilidade.
O problema é que a romantização e o exotismo podem fazer com que o artista indígena seja tratado como um "índio verdadeiro" ou "puro", e isso pode influenciar a forma como ele é tratado no sistema da arte. Em alguns casos, um artista indígena pode ser mais valorizado ou bem remunerado do que um artista trans, dependendo da situação. Em outros casos, o tratamento pode ser diferente. A configuração do artista no sistema da arte pode variar, afetando sua remuneração e visibilidade.
Então, o sistema da arte é composto por muitas camadas, e, ainda assim, é um campo em desenvolvimento. Na maioria das vezes, não temos um cachê digno ou um espaço adequado, porque é algo novo e muitas vezes envolve apostas. Quando fiz minha primeira exposição individual na Cristal Galeria, foi uma oportunidade de aposta. A Cristal não imaginava que, dois anos depois, eu participaria de uma bienal e que isso poderia aumentar significativamente o valor das minhas obras.
Às vezes, sinto que as pessoas nos veem apenas como uma aposta, como se dissessem: "Vou investir nisso aqui e ver o que acontece."
A aposta é aquela situação em que o pagamento não é muito alto, né? É o mundo empresarial, o circuito da arte funciona assim. Muitas vezes, começamos sem um cachê digno, entrando nesse ambiente com base em apostas. Os empresários e mecenas querem investir, mas isso pode significar que, se atendermos a certos padrões, podemos ser bem remunerados; caso contrário, o valor pode não ser justo. Como é um campo novo e ainda não consolidado, é frequentemente visto como uma grande oportunidade, mesmo que o cachê não seja adequado. Isso pode nos colocar em uma posição marginalizada.
Somos um grupo pequeno de indígenas que está rompendo essas barreiras e se destacando em bienais, salões e no cenário artístico. A verdade é que há muito poucos de nós nessas grandes exposições nacionais e internacionais. A maioria dos artistas não chega a 20 nas grandes mostras, o que revela um recorte e uma margem que ainda existe nesse circuito.
07. O que a participação na Art Rio significa para você e como você vê essa plataforma em termos de visibilidade para a arte indígena?
Acho que participar de eventos como a Art Rio é uma grande oportunidade para fortalecer a nossa presença como artistas e como pessoas que buscam viver da arte. Para mim, essa realização é bastante recente; levei um bom tempo para me afirmar como artista, e faz pouco mais de um ano e meio que decidi lutar para viver exclusivamente da arte.
Fortalecer isso e compartilhar com o público nossas lutas, novos imaginários e compreensões sobre o ser indígena é uma missão que assumimos. Estamos aqui para preparar novos territórios e abrir caminhos. A Art Rio é um desses espaços férteis onde não só eu, mas todos os meus parentes, podemos continuar nossa luta e nos fortalecer.
Cada obra indígena carrega uma narrativa e oferece a possibilidade de ampliar o entendimento sobre nossa diversidade e nosso imaginário. É uma chance valiosa para que as pessoas contemplem, comprem e aprendam com nossas obras. Considerando que o Rio de Janeiro, junto com São Paulo, é um centro importante para o circuito das artes, a Art Rio se destaca como um evento de grande relevância. Portanto, é uma oportunidade significativa, não apenas para mim, mas para todos os parentes que estarão presentes na Art Rio.
08. O que podemos esperar de você para o futuro? Há novos projetos ou obras em desenvolvimento que você gostaria de compartilhar?
Para o futuro, espero que no próximo ano eu possa realizar minha segunda exposição individual. Tenho um projeto em andamento no edital do estado de Pernambuco e estou aguardando o resultado, que já passou por todas as etapas. Portanto, é provável que a exposição aconteça, seja através do estado ou de forma privada. No próximo ano, desejo celebrar minha trajetória de dez anos no campo das artes com essa segunda individual. Será uma exposição que retratará a década da minha carreira.